terça-feira, 27 de maio de 2014

assim mesmo, sem legenda.

Sangrando

Quando saí do curso de teatro, em julho do ano passado, às vésperas do nascimento da Helena e da Beatriz, escrevi um cartão à Márcia, professora, agradecendo por ela ter me devolvido, de modo tão doce e simples, o sentimento sem nome que é estar no palco - sentimento que experimentei pela primeira vez aos 15 anos e, depois, só aos 26, onze anos depois, onze anos de boicote talvez, de ódio ao que havia de melhor em mim. Mas escrevi também que eu deixava o palco para ocupar o papel mais importante da minha vida: o de pai da Helena e da Beatriz.

E é assim que venho me sentindo: desempenhando um único papel na vida - o de pai da Helena e da Beatriz. E é um papel que cabe tão confortavelmente no meu corpo que, às vezes, sinto medo de não conseguir vestir outro. Tenho pensado muito na profissão, nos meus desejos. E tenho sentido medo, medo mesmo, de não conseguir retomar tudo isso, por mais que a razão que, por ora, me impeça seja fonte de um amor profundo, sincero e sem limites.

Outro dia, Helena abriu um livro meu em que guardo uma rosa que Márcia nos deu na nossa primeira apresentação, em fevereiro de 2012. Era a semana anterior ao carnaval e aquela rosa encarnada me deu como que a sensação de um respeito por mim mesmo. Eu estava me respeitando, permitindo que fluísse pelo meu corpo um prazer sem adjetivos, de tão avassalador. Não consigo descrever a sensação de gozo que é estar em cena.

A rosa, dois anos depois, está já sem vida, adormecendo e desfolhando-se.

Minhas carnes estão me exigindo o palco.

Preciso voltar.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O umbigo a dilatar.

Natal sempre foi uma data muito importante para mim. Era a época em que eu conseguia ressignificar o chão de terra batida da minha casa e suas paredes corroídas pelo tempo. Não tínhamos pinheiros, bolas, presentinhos, luzes - nada. Papai Noel, então, sequer conhecia os caminhos que levavam ao subúrbio escuro e abafado onde passei minha infância. Mas eu me perdia no sonho de ter uma casa com o telhado todo iluminado, uma árvore grande, com presentes em volta. E, no meu devaneio pueril, inventava para mim um pinheiro feito de papel ofício, estrelas com rabo de retalhos de cortinas e recortadas de chapas de alumínio restantes das obras que meu pai, serralheiro, fazia.

Mas o desejo de ter a casa bordada de brilho não me deixou. Me acompanhou a vida toda. E foi justamente no Natal que Mariana e eu voltamos. O ano de 2012 havia sido muito denso: exigiu-me a coragem de deixar para trás um lar que só existia na infinitude do meu querer. Me separei da minha mãe e do meu irmão e isso doeu muito, de uma dor funda, cujo sentido nenhum vocábulo tem coragem de domar. Deixei para trás o sonho da casa e tudo o que isso implica para um canceriano disfarçado sob as máscara de gêmeos, como eu. Me mudei em julho daquele ano a fim de descrever um caminho novo, só meu, em que eu pudesse dar corpo, agora sim, a minha própria narrativa.

Na semana do dia 18 de dezembro, Mariana e eu voltamos. E com esse reencontro, veio também a pulsão forte e inconsciente - minha e dela - de erguer paredes, rearranjar os móveis e dar novo significado ao que éramos. Queríamo-nos família e isso exigia a delicadeza de um filho. E foi, por nossas contas, nessa semana, que engravidamos, inconscientes de que aquele Natal exigiria para si seu verdadeiro sentido em nossa história. Aquele Natal trouxe (re)nascimento. Foi o Natal que me deu de presente Beatriz e Helena: os dois sorrisos que me engravidam de sim todas as manhãs, quando as vejo em pé no berço, à procura de nós.

"O homem que chegou aos quarenta anos imaginou loucamente o umbigo a dilatar. Imaginou que o umbigo abria muito e que a barriga toda se começara a levantar e a revolver. Tombou sobre si mesmo e achou que sentia o corpo como dividindo-se. Achou que talvez dividisse o corpo por ter dentro de si uma vontade múltipla, um desejo de ser mais do que um só."

MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens.

(continua...)

terça-feira, 6 de maio de 2014

Meu filho

Na volta para casa, enquanto tentava me encontrar nos caminhos escuros e molhados da Tijuca, embrenhava-me também em mim, como que procurando nova rota a descrever.

Tinha conquistado uma liberdade, sim. Morava sozinho. Entrar em casa, porém, e perceber que eu não cabia nela, me angustiava ainda mais. Precisava - como alguém que tenta se agarrar à água ao se afogar - de que aquele espaço se vertesse em quartos, varanda, janelas, vozes, abraço, carinho - amor. Precisava legitimar o lugar de pai que eu, levianamente, tomara para mim na minha família. Precisava de um filho, mesmo que de pano, como o do Crisóstomo.

       "Um dia, depois de ter comprado um grande boneco de pano que encontrou à venda numa feira, o Crisóstomo sentou-se no sofá abraçando-o.
       Abraçava o boneco e procurava pensar que seria como um filho de verdade, abanando a cabeça igual a estar a dizer-lhe alguma coisa. Afagava-lhe os cabelos enquanto fantasiava uma longa conversa sobre as coisas mais importantes de aprender. Começava sempre as frases por dizer: sabes, meu filho. Era o que mais queria dizer. Queria dizer meu filho, como se a partir da pronúncia de tais palavras pudesse criar alguém."

O vazio que eu sentia por aquela época me fazia andar pelas ruas, confessando para mim, baixinho, de forma que nem eu mesmo pudesse ouvir: "Meu filho".

Os dias transcorreram à revelia do meu querer e, na semana do Natal, Mariana e eu voltamos.

(continua...)



Consta nos astros, nos signos, nos búzios

O dia amanheceu prenhe de angústia. Saí para tentar respirar e voltei mais leve de coração. Abri meu e-mail e havia uma mensagem de uma aluna - mensagem bastante desaforada, em que ela me questionava, contraditoriamente, pelo fato de eu não ter tido nenhuma resposta sua acerca das orientações que lhe passava para a construção de sua prova de aula - avaliação necessária para que, na Faculdade de Letras, os alunos possam concluir a Prática de Ensino e se licenciarem.

Diante de tão inesperada mensagem, não sabia o que responder. Esse monstro que mora dentro de mim e do qual tenho um pavor incrível, segundo uma analista que tive, impedia-me de dizer. Doeu demais. Meus dedos travaram, como quando se tem artrose, mas respondi. Ela precisava de uma resposta que a colocasse em seu lugar. A dor, porém, de ter dito passou a se revirar dentro de mim, como se eu tivesse cometido uma falta grave, imperdoável, como se me odiasse por ter conseguido ser eu.

À tarde, era aniversário do André. Fui. A sensação, porém, de carregar um embrulho pesado me acompanhou até lá. Na chegada, apesar de o aniversário ser do André, a Juliana, que não me via desde junho, quando do meu aniversário, me levou um presente que me seria redefinidor: o livro O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe. Não conhecia o autor. Achei o nome esquisito, mas a capa era tão bonita, de um esverdeado sem forma, como uma pintura, que voltei para casa lendo. A primeira página me arrebatou, como se traduzisse as palavras que viviam dentro de mim e não encontravam o movimento necessário na minha língua para se articularem vida.

"Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo.
      Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas."

Eu era ali metade de mim: desejo profundo de liberdade, mas pulsão aguda por gente a quem amar, por estar junto, por uma casa com domingo azul se abrindo na janela, cheiro de comida na cozinha, conforto de uma família na qual eu tivesse de fato um lugar.

Mas eu estava só: longe do meu irmão e da minha mãe, separado da Mariana, saudoso de um pai que só existia como uma memória inventada por mim.

Duas semanas depois, estava eu, numa noite de segunda-feira, na Tijuca, de frente para um homem que só conhecia pela voz: o Cadu. Enquanto a chuva engolia a escuridão que abocanhava o céu naquele 26 de novembro, Cadu dispunha minha vida em dois papéis que ainda guardo, como certidão de um (re)nascimento. Cadu é astrólogo. Naquele dia, me explicava meu mapa natal e minha revolução solar. E ele tocou em pontos duros e silenciosos, pontos que esgarçavam para mim o que eu já sabia, mas preferia não saber.

A família foi um desses pontos. Geminiano no sol e na lua, tenho câncer no ascendente, em mercúrio e em marte. Sim, a ligação com a família e com tudo aquilo que diz respeito ao conforto de ser ter uma parede nua para se encostar, tudo isso me invade sem licença. E sim: eu tinha chegado aos 27 anos e assumido para mim a tristeza de não ter um filho, de não ter alguém que me permitisse a reescritura de mim.

(continua...)



quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

sempre quis escrever um blog, mas nunca tive disciplina para isso. as palavras quase sempre não respeitam o meu desejo e traem meus dedos, que recuam do teclado, como se tomassem a consciência de um crime iminente. escrever dói muito para mim. é uma tarefa que me exige a violência do dedo na garganta. me violento e me salvo quando escrevo.

2013 foi um ano embrulhado em sem-onde. passei o ano novo em arraial do cabo. não tinha pretensões para o ano que se abria. lembro apenas de, no silêncio de um mergulho, agradecer a deus pelo que havia aprendido com 2012, que também fora muito denso. a luz desvirginava a água e contribuía para que meus olhos ardessem ainda mais - ah, sim: preciso dizer que o mar exige que eu abra os olhos. tenho medo do escuro, tenho medo de me afogar. à noite, os fogos bordaram o céu e uma placa com 2013 em  vermelho irrompeu na areia da praia, iluminando a chegada do novo. olhava para ela e não sentia nada - nada. era apenas uma placa que esfriava com os ponteiros do relógio. e foi exatamente por não me dizer nada que 2013 exigiu de mim tudo, inclusive a escritura deste blog. preciso transformar esse enjoo que tem me dado "bom dia" há semanas em céu aberto e limpo. e, para isso, eu preciso escrever. não tenho como fugir: preciso escrever - torto, confuso, doído, mas preciso escrever. é uma necessidade - de vida.